eu tinha 17 anos quando fiz meu primeiro e único teste vocacional. eu já havia decidido que prestaria vestibular para Artes Cênicas porque o meu lugar era no palco. mas, mesmo assim, fiquei extremamente curiosa para saber se o teste confirmaria meu desejo.
me lembro exatamente da cena: a orientadora distribuiu papéis craft imensos e pediu para que uma pessoa deitasse no papel enquanto a outra a contornasse com uma caneta, desenhando sua silhueta. depois disso, cada pessoa decoraria seu corpo em linha única conforme os direcionamentos e provocações dela.
nunca me esqueci do diálogo que aconteceu entre a orientadora (que era fã de Charlie Brown Jr e foi a primeira pessoa que eu ouvi dizer que ele era o maior poeta da nossa geração) e minha amiga:
— em qual parte do corpo vocês colocariam o dinheiro?
— em lugar nenhum…
— como assim, em lugar nenhum?
— eu não me importo com dinheiro!
— mas você precisa se importar. dinheiro é essencial. sem ele a gente não constrói nada. é preciso pensar no que você quer conquistar.
minha amiga insistiu em dizer que não se importava. eu não disse nada, mas aquilo ficou em mim. meu sonho era ser atriz porque eu amava o teatro! mas eu também queria ser famosa, frequentar eventos glamurosos e receber prêmios importantes… eu sabia, mesmo que não admitisse naquele momento, que o dinheiro também era um desejo.
eu era muito nova, não tinha educação financeira, mas entendia que se estava naquele momento sentada numa sala de aula de uma escola particular fazendo um teste vocacional e sonhando em cursar uma escola de arte, era porque meus pais estavam pagando.
assim que eu comecei a fazer teatro (numa escola particular), me disseram que eu tinha que amar a arte pela arte, não pelo que era me trouxesse. ser artista deveria ser minha vocação e eu precisava tomar cuidado para não me vender ao aceitar trabalhos apenas pelo dinheiro ou pela visibilidade.
tudo isso veio à tona essa semana enquanto assistia uma entrevista da atriz Sarah Jessica Parker, que interpreta Carrie Bradshaw em Sex And The City, no podcast Call Her Daddy.
Alex Cooper, a entrevistadora, afirma: “ser atriz é quem você é em essência. você queria isso, você queria ser atriz”, e ela responde: “sim! atriz, mas não famosa. atriz, mas não rica. atriz, mas não poderosa”.
naquele momento, elas falavam sobre como fama e dinheiro se tornaram tudo o que os jovens querem e buscam hoje em dia, principalmente com a promessa de facilidade devido às redes sociais.
eu concordei completamente com as colocações delas porque quando o único desejo de alguém é ter fama e dinheiro, eu realmente acredito que essa pessoa ainda não sabe o que é desejar. essas duas coisas são consequências de um trabalho bem feito somado à sorte ou ao destino, dependendo do que você acredita.
mas…
se você é uma pessoa que deseja viver da arte e se nega a pensar sobre dinheiro e reconhecimento porque o que importa mesmo é criar, eu quero te convidar a refletir aqui comigo.
por mais verdadeira que a fala da SJP seja, em outro momento da entrevista ela conta que em seu contrato para viver Carrie Bradshaw está determinado que todo o guarda-roupa icônico da personagem pertence à atriz. entendeu? absolutamente todo o acervo de Carrie é de Sarah. e você e eu sabemos que o motivo não é valor sentimental.
por mais que a motivação dela para atuar não tenha sido a dupla fama&dinheiro, ela precisou aprender a lidar com as duas coisas e administrar seu patrimônio (que só cresce).
trazendo para nossa realidade, não passa um dia sequer sem que eu leia algum comentário, conteúdo ou notes¹ das pessoas reclamando dos criadores que falam, pensam e estudam sobre como aumentar suas métricas e receita.
eu entendo quem quer criar por amor e entendo também quem só quer consumir uns conteúdos gostosos para dar um tempo das cobranças e do caos do mundo capitalista.
mas…
nós que decidimos que o que criamos será nosso ganha-pão não podemos deixar de pensar em números. e isso não é nada gostoso pra gente. nós sentimos um desconforto enorme quando precisamos criar um conteúdo de venda com frases persuasivas, preços e prazos. mas ou é isso ou é vender o nosso tempo em um trabalho tradicional. e nós não queremos isso. nós já tentamos, acredite.
porque estamos todos tentando viver melhor, com nossas contas e nossa saúde mental em dia num sistema que não é nada gentil, mas que é nossa realidade.
eu realmente acho que se queremos que a arte seja um caminho possível, precisamos enxergá-la como trabalho. é mundano, é negócio, é concreto. não pra todo mundo, mas para quem a tem como profissão, sim.
isso não significa que precisamos criar de maneira rasa ou seguindo tendências que não nos contemplam. existem dois papéis aqui: a criativa e a administradora. o que você cria é seu, é único e precisa continuar sendo. agora, as estratégias que você vai utilizar para que sua arte seja vista e consumida precisam ser uma coisa à parte. é aqui que jogar minimamente o jogo se torna essencial.
artistas, por favor, saiam dessa ilusão de que cobrar e vender corrompe. queiram crescer, prosperar, pagar suas contas e bancar os seus sonhos com a sua arte. façam isso acontecer. sem papo de guru porque ninguém aqui é besta: pensem, estudem e falem sobre dinheiro. entendam como funcionam as plataformas que vocês distribuem seus trabalhos, escolham as que mais fazem sentido pra vocês e vão com tudo mesmo.
ninguém deveria ser mal visto por tentar viver como deseja.
e pra quem não está no mesmo barco: eu sei que você também ama a arte, tanto que também ama e precisa criar, mesmo que não viva disso. então pensa comigo: não é maravilhoso que artistas vivam do que criam? principalmente os independentes que não possuem patrocínio ou fama? não é incrível que eles possam usar a internet para promover suas criações e fazer dinheiro com isso?
escritoras, pintoras, artesãs, atrizes, cantoras, astrólogas, oraculistas, desenhistas, ilustradoras e tantas outras estão pagando suas contas e construindo suas vidas graças a seus cursos, mentorias, vivências, newsletters, canais no youtube e perfis no tiktok. inclusive esta que vos escreve.
eu lido em terapia (que posso pagar graças ao meu trabalho) com todos os meus receios, bloqueios e preconceitos em relação ao dinheiro. e eu escolhi escrever esse texto inteiro para contribuir com o seu processo também, caso você, vira e mexe, caia nessa espiral que te diz que “artista de verdade cria apenas por amor”.
artista de verdade luta para viver da arte.
e é isso que estamos fazendo.
mural do desejo
restam apenas 4 vagas para a Residência Criativa Desejante na Praia dos Carneiros, em Pernambuco. além disso, essa é a última semana para fechar com a condição especial de pagamento descrita no site (parcelamento pelo pix). para saber com detalhes o que vai rolar e como se inscrever, clique aqui e acesse o site.
curadoria da semana
🎧semana passada não tivemos episódio novo do podcast porque a minha rotina está uma loucura, mas eu tenho certeza que você ainda não ouviu todos os episódios. então que tal buscar algum que combine com seu momento de agora?
🎬o videocast que citei na news (em inglês)
📚a primeira edição da nova fase da Desejante foi ao ar semana passada, em plena lua nova em leão. vem cá espiar:
Como sempre, necessária e impecável.
O que acho mais louco é como, além de tudo, a conta não fecha nem nas cobranças sociais: se você é artista que assumidamente quer fazer dinheiro com a sua arte, é um vendido. É menos artista, tem menos alma. Mas se tem tempo para se dedicar à ela independente de ser uma fonte de renda, é um filhinho de papai mimado que só cria porque não precisa se preocupar com dinheiro. Ou seja: querem consumir a criação, mas só se ela vier do perrengue, sofrimento e abnegação
Acho muito importante isso que você trouxe, Yna, obrigada! E acho mais louco ainda que é esse tabu de ganhar dinheiro que incutem ainda mais em mulheres. Hoje consigo falar de boca cheia que quero ter dinheiro e ser rica sem parecer mesquinha, mas foi trabalho pra chegar aqui - e continua sendo o de lidar, todos os dias, com a sombra coletiva que envolve grana. ❤️ mais ainda, com a que dissocia fazer o que se ama de ser bem paga!