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o ano era 2013. eu tinha acabado de voltar de uma temporada agridoce no Rio de Janeiro e estava decidida a trabalhar em um restaurante que uma das minhas melhores amigas da época trabalhava. eu nunca tinha carregado um prato na vida, mas queria muito manter a (quase)autonomia financeira que havia começado a conquistar em terras cariocas.
marquei minha entrevista, fui e passei de primeira para começar o treinamento. sendo brutalmente honesta, sei que consigo trabalho rapidamente graças aos meus privilégios. e nesse caso, isso realmente contava, já que o restaurante era famoso por ter “os garçons mais bonitos de SP”.
o ano era 2013. o ano em que “o gigante acordou” e que não era só “pelos 20 centavos”, lembram? o ano em que, trabalhando como garçonete, tivemos que fechar as portas do restaurante e ninguém entrava ou saía. lá fora o conflito entre policiais e manifestantes comia solto, aqui dentro eu aprendia a atender mesas e abrir vinhos ao som de uma playlist suave enquanto sorria mantendo os olhos arregalados e assustados. o ano em que eu estive presente numa manifestação pela primeira vez na vida - sem entender absolutamente nada.
foi nesse mesmo ano que eu comecei a me entender como um ser político. e foi nesse mesmo ano que eu me descobri uma feminista.
eu lembro até hoje de como foi. uma colega de trabalho pequena em tamanho, mas gigante em intensidade e força, me olhou diretamente nos olhos enquanto eu dizia: “eu não sou feminista, nem machista” e me perguntou: “você acha que mulheres devem ter os mesmo direitos que os homens?”. eu prontamente respondi que sim. ela sorriu e me disse: “então você é feminista”.
ela é a Gaba. uma das minhas grandes amigas e dona dos olhos cor de mel mais radicalmente intensos que eu já vi. e eu sou muito grata por ela ter aberto meu par de olhos azuis radicalmente expressivos.
a partir desse momento, eu me tornei estudiosa e ativista. no início, extremamente raivosa encarando e confrontando homens que me assediavam nas ruas. minha mãe morria de medo e sempre me pedia para não fazer isso. mas era mais forte que eu. saía de mim antes que eu parasse pra pensar.
eu vestia a palavra FEMINISTA no peito com orgulho.
com o crescimento da “quarta onda feminista”, cresceu também o interesse da mídia pelo assunto. ser mulher estava em alta! ser mulher empoderada, então! uau!!! e aí surgiram movimentos maravilhosos como esse aqui:
“tomara que caia é sexismo: vista uma blusa sem alça”, diz a capa da revista num país onde 2 mulheres são estupradas por minuto.
as críticas ao movimento começaram a surgir com força e “feminista” virou sinônimo de “mulher-raivosa-que-odeia-homem-não-se-depila-e-aborta-como-quem-vai-à-padaria” para a parcela conservadora na população. mas aí mora uma grande questão: o Brasil (pasme!!!) é um país conservador. e mesmo mulheres que simpatizavam com a causa começaram a temer o rótulo.
ouvi de pessoas bem próximas a mesma frase que eu repeti pra Gaba lá em 2013. eu tento até hoje fazer o que ela fez comigo e explicar o que é DE FATO lutar pela equidade de direitos e pela liberdade das mulheres. mas vira e mexe uma notícia de “denúncia falsa de estupro contra um jogador famoso” surge. e aí já viu, né? lá se vão minhas horas de discurso pelo ralo…
e aí eu me lembro que antes o nome era “sufragistas”. tornamo-nos feministas pela mesma razão que nos tornaremos qualquer outra nomenclatura nos dias de hoje. porque a todo momento nossa voz será descreditada com mecanismos estratégicos muito bem orquestrados para que se mantenha um sistema homogeneamente masculino&branco. isso é um projeto que está em voga há mais ou menos 5000 anos com a implementação do famigerado patriarcado - outra palavra que gera arrepios e viradas de olhos.
essa semana ficamos sabendo sobre o projeto de lei que prevê uma punição maior para as mulheres que abortarem do que para os homens que estupram. também ficamos sabendo que, segundo esse projeto, essas mulheres seriam presas mesmo se a gravidez fosse proveniente de um estupro.
o x da questão é que esse PL prevê essa punição para o aborto após 22 semanas, ou seja, um pouco mais de 5 meses. o y da questão é que isso prejudica principalmente crianças e adolescentes violentadas, já que a gravidez demora a ser notada e o abuso demora (ou quase nunca é) a ser descoberto. o z da questão é que nossa sociedade busca rapidamente formas de punir as mulheres e mais rapidamente ainda formas de safar ou nem questionar os homens agressores.
nós ainda temos problemas gigantescos para combater enquanto sociedade. questões de saúde e segurança, questões básicas para a sobrevivência com dignidade. o buraco é muito, mas muito mais embaixo.
eu escolho falar dos desafios por um olhar otimista, desejante, bonito porque eu nos quero atentas, fortes e esperançosas. eu nos quero ocupando espaços e vencendo. nos quero no topo! não porque fica bonito na capa de revista, mas porque eu acredito ser a única forma de mudarmos o mundo mesmo que essa mudança seja feita gradualmente. me lembro diariamente que estou aqui hoje porque as mulheres vem resistindo há séculos. quem sou eu, do alto do meu privilégio, para jogar fora seu trabalho árduo? é minha missão. o bastão foi passado.
eu sei que é cansativo e que às vezes bate uma revolta e um cansaço. mas é só olhando pra realidade que podemos nos organizar para mudá-la.
por isso que hoje eu escolhi falar sobre algo dolorido. para que você saiba que por trás de cada assunto que tratamos por aqui, existe uma mulher trabalhando como pode para a expansão de consciência, elevação da confiança e autonomia de outras mulheres. para que assim tenhamos o fôlego necessário para continuar e fazer da nossa vida um grande deleite, mas também um grande manifesto.
você pode não querer mais se dizer feminista. pode abominar a palavra e as lacrações de internet. tá tudo bem. isso não é a causa real. nós, mulheres que lutam por liberdade e direitos, não precisamos de um nome. nós existimos antes mesmo do nome existir. existimos antes mesmo de saber que existia um nome e uma teoria para o que fazíamos. e continuaremos existindo para além de tudo isso. nós não somos um nome, somos uma causa que atravessa as gerações. e continuaremos atravessando.
Texto necessário de ler! Gratidão!
De fato, o buraco é bem mais embaixo. Me lembrei de todas as vezes em que senti, e ainda sinto, o medo de não me sentir segura saindo sozinha, coisa que tanto adoro. Por me achar estranha ao chegar sem ninguém junto em algum lugar e ter que olhar para todos os lados ao voltar pra casa. Ou mesmo poder ser quem sou sem acharem que é algo mais.
Isso só para citar alguns exemplos.
Texto extremamente necessário. Obrigada ♥️