o curioso caso de amor entre mulheres e filmes de psicopatas
enxergar nossos monstros e nomeá-los como tal
“maturidade é perceber que as mulheres não dão conta de assistir filmes tristes com cachorros, mas assistem as piores atrocidades cometidas por serial killers sem perder o sono”. não era exatamente assim, mas era algo do tipo que dizia um criador de conteúdo num vídeo que me fez soltar um tranquilo: “há! é verdade!”.
eu sou um desses exemplares. chorei copiosamente lendo e assistindo Marley&Eu, mas não derrubei uma lágrima em Hannibal. aliás, adoro essa trilogia e assisti o primeiro filme (Dragão Vermelho - 2002) ainda na adolescência quando também era uma espectadora assídua de Linha Direta e Law&Order SVU (Mariska Hargitay, te amo!). e ainda hoje me pergunto como não pensei em ser jornalista investigativa…
atualmente estou envolvida em duas histórias. “You” estreou a quinta e última temporada e eu não via a hora de ver Joe Goldberg pagando lentamente por cada crime que cometeu. Humbert Humbert me narra todas as manhãs as atrocidades que pratica com sua amada criança-de-apenas-12-anos (!!!) Lolita com uma dissimulação absurda e me faz me contorcer de ódio logo cedo. eu já me estressei só de escrever isso.
eu não tenho uma resposta científica sobre o porquê mulheres assistem filmes de psicopatas numa boa. mas eu posso dizer o meu motivo.
em primeiro lugar, estratégia de sobrevivência: entender como eles pensam e agem para não correr o risco de cair numa de suas armadilhas. depois, um bocado mais em baixo: tentar entender o que faz um ser humano ser tão atroz, principalmente com mulheres. por qual motivo eles nos odeiam tanto? e por último, o que me faz humana: expurgar o meu ódio e o meu medo todas as vezes que vejo esses desgraçados tomando do próprio veneno. nada mais satisfatório quando você ainda não é um ser completamente evoluído e sente um leve prazerzinho na vingança.
mas uma coisa recentemente me saltou aos olhos: há quem diga que o pedófilo Humbert era um romântico apaixonado do mesmo jeito que há quem esteja completamente apaixonada por Joe Goldberg.
como Penn Badgley, o ator que interpreta Joe, questionou em uma entrevista: “até que ponto estamos dispostos a perdoar um homem branco malvado?”. importante ressaltar que desde que a série iniciou, Penn tenta desenhar para o público o quanto Joe é absurdamente cruel. ele falha. ou somos nós quem falhamos em perceber?
tanto Lolita quanto You são narrados pela perspectiva do criminoso. dois homens que se esforçam muito para ver a si mesmos como inocentes, mesmo tendo plena clareza de que não o são. se você estiver atenta, são bem claras as descrições de abusos e agressões tanto no livro quanto na série. mas o problema é que os narradores são abusadores profissionais. eles sabem como manipular suas vítimas. e, sim, até mesmo nós que não nos assustamos nem um pouco com os olhos aterrorizantes de Hannibal Lecter podemos cair nesse papo. porque caímos na vida real inúmeras vezes…
a diferença é que o Sr. Lecter é claramente um psicopata. está estampado em seu olhar e apesar do ótimo poder de persuasão, ele sabe o que é e não tem medo de assumir.
Joe e Humbert, não. eles tentam convencer a si mesmos que o mal que fazem não é de todo mal. se os membros do júri tiverem um pouco de compaixão, também perceberão suas amáveis intenções. além disso, são dois homens brancos, bonitos, educados, gentis, reservados… eles não tem cara de quem faz maldade. eles tem cara de quem salva a princesa da torre. e, segundo eles, é exatamente o que estão fazendo.
uma vez vi um post com um comentário de um homem dizendo: “se os homens não existirem, quem vai proteger vocês?” e uma resposta dizendo: “de quem?”.
eu não odeio homens. eu odeio uma cultura que colocou no nosso inconsciente uma imagem de “homem bom” que embaça nossa visão e nos faz acreditar que ele só fez o que fez “por amor” ou por ser “apenas um menino”, mas que não me permite ser “apenas uma menina” desde que eu menstruei aos 12 anos. mesma idade de Lolita.
mas eu também não sou flor que se cheire. porque o prazer inenarrável que eu sinto quando a vingança dá certo e o verme apodrece a sete palmos do chão não faz de mim um ser de luz, convenhamos. ali, naquele segundo de prazer, eu encontro o que há de mais cruel em mim.
talvez seja por isso que mulheres não perdem o sono com filmes de psicopatas: nós ansiamos conhecer nossos abismos internos. todo trabalho que ousamos fazer quando mergulhamos em nós mesmas não é apenas para reconhecer quão boas e amadas nós somos. é para nos ver de verdade. com tudo o que há de mais lindo e de mais horrendo.
como eu costumo dizer, é claro que nosso lado sombra não é um Hannibal Lecter. mas talvez seja um Joe Goldberg: nos encarcera numa cela de vidro e nos mantem reféns de nós mesmas e de nossos traumas com a desculpa de que isso é amor. e talvez isso faça com que a gente se meta cada vez mais em enrascadas porque é a única coisa que reconhecemos.
enxergar nossos monstros e nomeá-los como tal é necessário social e emocionalmente.
talvez assistir esses filmes seja uma forma bizarra de… cura? por nos fazer enxergar simbolicamente o que se repete em nossa história.
esses são apenas devaneios que tive enquanto estou aqui, mergulhada nessas histórias. coisas que penso e que compartilho com amigas próximas e com meu companheiro que reage exatamente dessa forma:
se você também gosta desse tipo de filme, me conta o motivo? e de repente, como quem não quer nada, me indica algum pra coleção?
curadoria da semana
🎧estou completamente viciada no podcast Reparação Histérica e confesso que ele inspirou um bocado essa edição
🎬tem uma minissérie muito subestimada na Netflix chamada Alias Grace (inspirada no livro homônimo de Margaret Atwood) que mostra as sessões de análise de uma assassina nos anos 1843. é baseado em fatos e olha… assista!
📚a
é uma newsletter que eu tenho a honra de colaborar vez ou outra e agora ela está aqui no substack! pra quem ama aquele estilo revista com várias temáticas, e colaborações, vai amar acompanhar.
PUTAMIERDA, eu to apaixonada por esse texto (e mentira que vc tbm é fãzoca de SVU? Mariska Hargitay, meu eterno amor e crush)
Escrevi HOJE a pergunta "o que faz de alguém uma boa pessoa?" e eu amo que não exista uma resposta absoluta - nem uma bondade absoluta - e por isso essas histórias me encantam.
Pra além do meu fascínio pela mente humana e seus limites, principalmente com psicopatas clínicos (é inato? É evitável? Qual o ponto de virada?), eu fiz as pazes com o fato de que ver esses filmes e séries expurgam o que existe de mais tenebroso, vingativo e sombrio em mim, também.
E os meus preferidos na loucura são: Precisamos falar sobre Kevin, que absolutamente TUDO do filme me faz querer sentar num café e discutir por horas, Criminal Minds, Dahmer e, em livros, Jantar Secreto do Raphael Montes e As Garotas, da Emma Cline, que entra ali na temática de seitas, que também sou fascinada HHHAHA
AMEI essa brisa toda! Fiquei encucada por aqui. Acho que concordo bastante com sua proposição do final de sentir um prazer na vingança. Como nunca é uma coisa só, fiquei pensando que também mergulho em filmes assim quando quero "me distrair". Por mais doido que isso parece, às vezes, é uma forma de fuga da realidade pra me ver totalmente entretida numa trama que não é a minha - ao mesmo tempo que, em algum ponto, já foi a minha também. E aí voltamos pro ponto inicial: ver eles pagarem é gostoso demais. Eu vou procurar na minha listinha de filmes/séries já assistidos e volto aqui depois com recomendações, hahaha.