há uns dias comecei a ler a biografia de uma das maiores atrizes que já pisaram neste planeta: Fernanda Montenegro. tenho o livro há um bom tempo, mas não tinha coragem de começar. atuar era uma paixão pra mim. avassaladora. dolorida e prazerosa na mesma medida.
poucas pessoas sabem disso, mas estudar teatro é dissecar a mente humana. vasculhar seus labirintos, buscar as motivações, os desejos, os medos. não é simplesmente dizer o que está escrito no texto. antes da palavra, o ato. o corpo. a respiração. o olhar. a batida do coração.
ter passado por esse servir de maneira tão entregue como vivi me deu, sem que eu percebesse, sensibilidade e capacidade para fazer o que faço hoje.
eu me toquei lendo o livro de que todas as vezes que eu falo da minha vida como atriz aqui, eu falo de um lugar de dor. e isso me deixou levemente triste comigo. me apeguei nesse discurso do que “deu errado” e pouquíssimas vezes (talvez nenhuma?) te contei sobre o que amei durante esses 12 anos.
o teatro me deu tanto!
eu aprendi a arriscar, a saltar no vazio. se hoje eu não tenho medo de enfrentar o meu medo de errar é porque eu subi num palco. se eu tenho certeza de que consigo me virar em qualquer situação, é porque eu me lancei com tanta gana nessa profissão que corri os maiores riscos. se hoje eu sei até onde eu chego, foi porque fui treinada por 12 anos a pensar que dá pra ir um pouquinho mais.
aos 19 anos, interpretei Alaíde, personagem da peça Vestido de Noiva, do genial e polêmico Nelson Rodrigues. em um dado momento, eu colocava minha perna direita em cima de um cubo de madeira, puxava meu vestido de noiva até a virilha e dizia: “e quem é que tem pudor quando gosta?”
eu, uma menina virgem e realmente cheia de pudores quanto a sua sexualidade, dizia aquelas palavras com tanto tesão! era minha parte preferida. eu me sentia poderosa, grande, mulher. no tempo em que eu estava em cena, toda a insegurança do auge do meu transtorno alimentar sumia. Alaíde me fez encontrar a malícia em mim. e eu nunca mais esqueci que a possuo.
eu tenho uma cicatriz no joelho direito que ganhei interpretando a minha personagem preferida da minha carreira, a Ester (de “Meia-Noite, Feliz Natal”, escrita pela minha querida amiga Carol Rainatto).
Ester foi minha primeira personagem profissional. ela era uma mulher super sexual, aberta, livre, divertida… por fora. por dentro, uma insegurança danada. ela usava essa casca como uma afronta ao lugar de onde veio, tão tradicional e correto. eu amava os olhares de enfrentamento, as frases ousadas para cutucar os irmãos, a hipocrisia no discurso do jantar em homenagem à mãe. era delicioso ser tão equivocada de propósito.
na estreia, eu caí em cima de um móvel do cenário que quebrou e um pedaço de madeira entrou no meu joelho. o sangue escorrido pela perna combinou tanto com o final da peça, que quando acabou, eu estava radiante!
de todas as cicatrizes deixadas pelo teatro, essa é a única visível. e a que eu mais amo. ela me lembra da entrega, da paixão, do sonho, do desejo. mais até do que a tatuagem de máscaras que eu tenho nas costas. bem mais.
ela me lembra da cumplicidade que eu tive com essa personagem e da gratidão que eu tenho por ela ter existido em minha vida. Ester me ensinou a delimitar fronteiras e olhar para o meu corpo com mais amor. não é por nada, não, mas eu me sentia uma grande gostosa quando era ela. e, talvez você não saiba, mas eu costumava ter muita dificuldade em me sentir assim.
Clara foi minha despedida. uma professora de piano apaixonada por seu aluno que ainda era uma criança. difícil, muito difícil. só não foi mais difícil porque meu amigo que interpretava Martin tem a minha idade.
eu amava o figurino (quem fez foi a , acredita?) e o cenário dela. amava os gestos delicados, a fala etérea, o olhar sonhador. e tinha uma enorme dificuldade em me conectar com seu desejo. foi a primeira vez na vida que antes de dar um texto, meu cérebro simplesmente sumiu com todas as palavras. a sorte foi que o corpo lembrava. magicamente, o texto saiu da minha boca enquanto minha mente estava completamente vazia e eu me tremia de medo de não dar conta. foi o momento mais mágico que eu já vivi em cena.
não acho que fui uma boa Clara. eu não consegui me entregar completamente ao seu desejo. talvez porque eu tenha entrado para substituir uma amiga e não tenha tido tempo de ensaiar? provavelmente. mas também porque ainda existia em mim uma vergonha de desejar em público.
Vic, minha amiga que interpretava brilhantemente Clara antes de mim, simulava um masturbação em dado momento da cena. eu não consegui.
Clara me fez ver o quanto eu precisava me livrar da vergonha de ser uma mulher sexual. e então eu comecei um processo intenso de reivindicar meus desejos.
essas foram 3 das 9 personagens que eu dei vida. percebe como cada uma deixou em mim uma mudança profunda? eu escolhi essas três porque se hoje eu falo com você sobre se tornar uma mulher desejante, é porque aprendi com elas a olhar pra dentro e perceber que eu não fazia ideia de onde estava o meu desejo.
o teatro me aproximou de mim mesma, principalmente quando eu fui embora dele. parece que os deuses me disseram: “vai. você precisa descobrir quem você é sem precisar ser outras”. e eu obedeci.
e hoje, depois de ter passado pela fase da raiva, da revolta e da autopiedade, sinto que entro finalmente na fase da gratidão e da saudade boa. eu sabia que esse momento chegaria, uma hora ou outra. mas não quis apressar o passo. tudo a seu tempo.
a arte acessa o que não vemos. ela atravessa sem que a gente perceba. uma boa música agita suas águas internas e redescobre sentimentos esquecidos, engavetados. as luzes de uma pintura podem desbloquear memórias que te trazem as respostas que você buscava. uma atuação visceral vai te lembrar de que você é gente. e que ser gente é sentir com cada poro.
eu sinto pena de quem condena a arte. sinto dó, de verdade, de quem não consegue se entregar a ela e repensar a própria maneira de existir. um mundo sem arte é um mundo nublado, sem vento, sem som. nem triste consegue ser porque para sentir tristeza é preciso estar vivo.
eu fui muito feliz como atriz. eu amava ir ao teatro. me sentia gigantesca. porque eu estava ali enfrentando tudo para fazer o que amava. eu me achava corajosa, forte. me sentia parte de algo grande. era gostoso demais. até deixar de ser.
e uma das coisas mais preciosas que a gente precisa saber nessa vida é a hora de ir embora. eu fui porque me escolhi. eu não tenho vocação, talvez. o teatro era um grande amor, mas não incondicional.
mas eu fui muito feliz. eu amei cada segundo. eu realizei um grande sonho. e absolutamente nada foi perdido: eu sou quem sou e faço o que faço porque sou atriz.
antes que eu me esqueça…
tudo o que eu aprendi, alquimizei e transformei no meu servir de hoje. eu guio mulheres a reivindicarem seus espaços de expressão e desejo, e eu amo fazer isso. vai ser uma honra guiar você que me lê. clicando aqui, você preenche o formulário para agendar uma reunião gratuita comigo onde te explico os detalhes do processo e te abro um espaço para me contar sua história. te espero!
curadoria da semana:
🎧o novo álbum do Jota Pê tá simplesmente delicioso e uma trilha perfeita pro verão que tá chegando
🎬minha mãe me enviou esse vídeo da poeta Elsa Moreno recitando sua poesia e me arrebatou! talvez a coisa mais linda que você verá hoje
📚claro que não poderia recomendar outra leitura nessa edição: a biografia da magnífica Fernanda Montenegro é uma viagem deliciosa não só por sua vida, mas também pela história do teatro brasileiro.
“eu sou quem sou e faço o que faço porque sou atriz”
Ser atriz é algo que se é, independentemente de estar exercendo ou não!
Sua atriz segue viva em você se manifestando em outras artes, como a que você compartilha por aqui com a gente!
E se e quando sua atriz voltar a desejar colocar o corpo em cena, por pura diversão e expressão, adoraria guia-la por caminhos prazerosos e sem auto sacrifício de fazer isso que a gente ama fazer!
De atriz para atriz um abraço coração com coração!
Ai Ynaaaa 🥹🥹🥹
Aguou uzoio
Que bonito te ler contando tua história. Que bonito sentir pelo teu relato o toque dessas mulheres na alma de atriz
Gracias por escrever e por nos deixar ler